Confira a entrevista completa.
Instituto Religare – Urien, a senhora nasceu numa comunidade de bruxaria ancestral, na Rudó da floresta Prama, mas viveu muito tempo também aqui na cidade, em contato com outras culturas e denominações, pode nos falar um pouco de como se deu a sua relação entre esses dois ambientes e como isso pode ter contribuído para sua formação.
Urien Althoff – Primeiro, pode dispensar o senhora (risos), não há necessidade dessas formalidades. Bem, nasci em meio a floresta Prama, e na época praticamente não saíamos do convívio de nossa aldeia, o primeiro a fazer isto, até como meio de difundir nosso conhecimento e nossa tradição, foi o atual coordenador desta instituição, Tirion Renders, que inclusive foi o responsável por eu ter vindo estudar nesta casa. Com a crescente intolerância religiosa, e a ameaça as reservas naturais, a floresta Prama e a nossa tradição corriam risco, uma vez que sem o território da floresta e a força energética dos ancestrais ali enterrados não somos capazes de praticar magia, e Tirion foi um visionário por naquele tempo entender que para ajudar seu povo precisava se afastar dele e abdicar da prática de sua magia, e foi muito criticado por isso na época. Cresci ouvindo sobre como ele abandonou a todos, vendo o ressentimento dos mais velhos na tradição, e vivi também o período de glória dele, quando seu trabalho mostrou resultados e nossa floresta e nosso povo tiveram seu lugar reconhecido e preservado. Quer dizer, eu vi que a possibilidade de conhecimento mais científico, se é que posso chamar assim, era benéfica para o crescimento pessoal, independente da religião que praticasse. Então, quando os fatos com a expansão de consciência deixaram claro que eu estaria predestinada a ser a nova líder religiosa da Rudó, aceitando convite de Tirion, me fiz aluna desta instituição, convivi na cidade, tive boas e más experiências, e ampliei muito minha visão de mundo e meu conhecimento, o que de fato me ajudou a hoje guiar meu povo. Isso tudo, aliado a minha experiência pessoal de vida também, os percalços sofridos até estar de volta a minha terra em Prama, me fizeram hoje ter um discernimento que me seria impossível se tivesse me restringido ao convívio de minha aldeia. Acho que um líder deve sempre ver além, e, modéstia parte, creio ter conseguido alcançar isto.
IR – Urien, a senh... você. (risos) Você quando concluiu os estudos aqui na instituição não voltou imediatamente a sua aldeia, e na resposta acima você cita o que chama de "percalços sofridos", se importaria de nos falar sobre essas suas experiências antes de assumir seu posto de xamã da Tradição Maine?
UA - Não gosto muito de falar sobre esse assunto, por ser doloroso para mim. Mas aprendi que minha experiência pode ajudar outras pessoas em sua caminhada, então, não me importo em cutucar minhas feridas se for para prevenir o surgimento de outras... Quando terminei meus estudos não podia voltar a Prama, pois meu coração estava aqui. Conheci um rapaz durante minha estadia na Religare, Otho, um também aluno da instituição, e nos apaixonamos. Quando terminei meu tempo de curso, não consegui partir, então neguei minha missão na Rudó em Prama para viver aqui com Otho, que se tornou professor, tivemos um filha, Runa e vivemos em harmonia por muitos anos, até que o relógio da vida parou seus ponteiros para ele. Runa já era uma jovem mulher, e estava envolvida com um rapaz, e julguei que devia continuar aqui e auxiliar minha filha na consolidação de sua vida a dois. Assim o fiz, e acompanhei o nascimento de minha neta, Éster. Durante todo esse tempo negligenciei a Runa e Éster o conhecimento sobre minha tradição, lhes passava um ou outro ensinamento, mas não de forma explícita, quero dizer, elas não sabiam que o cuidado com a natureza que lhes ensinava fazia parte de um dos cultos da Maine, ou qualquer outra coisa ou hábito que transmitia. Quando Éster drasticamente morreu em um acidente automobilístico, seu marido se transfigurou enquanto ser humano, se tronou violento, bebia muito e ameaçava a segurança de minha neta Éster. Acabei por conseguir sua guarda, mas ele ainda nos roubava a paz. Tentou sequestrar a filha quando ela estava indo a lanchonete com uma amiga, mas ela foi sorrida por um policial que estava a paisana. Depois disso vivíamos com medo, temia por Éster. Percebi que tudo que busquei construir naquele lugar não era sólido, tudo me foi tirado muito cedo, nada se consolidou no tempo, e não queria que acontecesse o mesmo a minha neta. Estava matando minha tradição ao não transferi-la aos meus descendentes, e sentia o chamada para seguir meu destino cada vez mais forte, Voltei a Prama e tive que enfrentar o ressentimento dos meus, e o choque que foi para Éster a mudança drástica de sua cultura, demorou um bom tempo para as coisas entrarem nos eixos. Mas hoje enfim, sinto que estou no lugar certo e que tudo que vivi, apesar de doloroso, foi um grande aprendizado que me trouxe até o ser humano que hoje sou.
IR – Agora que falamos um pouco sobre sobre sua trajetória pessoal, gostaria de lhes fazer algumas perguntas no sentido de saber sua opinião sobre o diálogo entre religiões. Tudo bem?
UA - sim, pode perguntar o que quiser.
IR – Então vamos lá. Pensando numa perspectiva globalizada, a senhora acredita que a sociedade pós-moderna em que vivemos pressupõe uma maior abertura ao diálogo inter-religioso? Ou seria o contrário? Por quê?
UA – Eu acredito que uma lição benéfica que acredito que aprendemos do pensamento pós-moderno é que nenhuma pessoa e instituição podem pretender, de maneira crível, possuir e expressar a verdade em toda a sua plenitude e de forma perfeita. Quer dizer o que é a verdade hoje? Não podemos alcança-la. Não quero dizer com isso que uma busca, individual e coletiva, por uma posse e expressão plena da verdade não tenha sentido, mas digo que em qualquer momento da história, uma pessoa e uma instituição só podem pretender alcançar uma posse e expressão verdadeira parcial, imperfeita. O que possuímos são “pequenas verdades”, quer dizer, percepções da realidade adequadas somente para o agora, pois são necessariamente limitadas e estão relacionadas com nossa localização histórica, sociopolítica, cultural e religiosa. Então acredito que todas as pessoas sensatas, na atualidade, acreditam que se faz mais do que necessário um diálogo inter-religioso saudável, pois nenhuma denominação é dona da verdade absoluta. Mas sempre há os intolerantes que se julgam detentores de todo o saber, sempre vai haver problemas e embates religiosos não saudáveis, mas creio ainda que estamos caminhando para consolidar um ambiente de relações saudáveis entre as religiões e crenças.
IR - Dentro da Tradição Maine como vocês veêm essas relações inter-religiosas? Há espaço para isso ou não?
UA - Como falei no início, antes a tradição era bastante fechada e muitas pessoas jamais tinham saído da aldeia, não conheciam nada além da Rudó. Mas hoje, e tomei isso também como uma missão do meu trabalho como xamã, a tradição está se abrindo para a importância de dialogar com a crença do outro, respeitá-la e aprender com ela também. Alguns membros da tradição ainda são resistentes a isso, mas aos poucos o cenário vai sendo mudado. Hoje já trazemos membros da aldeia para alguns eventos abertos ao público aqui no Instituto ou em outros espaços, alguns membros religiosos de outras denominações visitam a Rudó e as vezes fazem vivência conosco por algum tempo, aos poucos as relações vão se fortalecendo.
IR - Você gostaria de deixar alguma mensagem ou algo que queira falar e não foi perguntada?
UA - Gostaria apenas de parabenizar o Instituto pelo belo trabalho que fazem aqui, e do qual também sou fruto. Parabenizar Tirion, a quem sou admiradora e tiete declarada (risos). E agradecer pela entrevista, pela oportunidade de falar da minha tradição, das minhas crenças. Gratidão a todos vocês da Religare!
IR - Nós que lhe agradecemos Urien!
UA - Não... não há de que.
Entrevista feita por Jade Casedes
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